“Às 9h03min, Oziel Gabriel, que portava, exclusivamente, uma faca embainhada, arco e flecha e se posicionava atrás de uma árvore foi atingido por munição 9 mm marca CBC com encamisamento tipo Gold, de uso exclusivo da Polícia Federal. Não se sustente que, naquela situação, portando faca, arco e flecha, a cerca de 100 metros de distância do pelotão, o indivíduo apresentava imediato risco de morte, pois, fosse assim, mais da metade dos indígenas seria alvo de ação letal da Polícia. Apesar da conclusão de que o tiro que matou o indígena partiu de uma arma usada pela Polícia Federal, não se obteve sucesso em localizar a munição para identificar o policial autor do tiro, de forma que não restou alternativa que não o arquivamento do inquérito policial nº 0240/2013”.
O trecho acima faz parte do Procedimento Administrativo nº 1.21.000.000913/2013-73, instaurado pelo Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul (MPF/MS) para apurar a atuação e observância aos limites legais pela Polícia Federal e Polícia Militar que, em 30 de maio de 2013, cumpriram ordem judicial de reintegração de posse na Fazenda Buriti, em Sidrolândia.
A investigação do MPF baseou-se em três procedimentos sobre a desocupação da Fazenda Buriti. O inquérito policial nº 0240/2013 (PF/MS) que apurou o homicídio de Oziel Gabriel e as tentativas de homicídio de agentes policiais, além do incêndio em edificações e veículos. O Termo Circunstanciado n° 029/2013 (PF/MS), que apura suposto crime de resistência por parte de indígenas durante a desocupação da Fazenda Buriti. A Sindicância Investigativa n° 002/2013 (Corregedoria da PF), que apurou eventuais irregularidades cometidas pelos Policiais Federais durante a operação de desocupação.
O MPF concluiu que aquela foi uma operação policial fracassada, com graves erros, que resultaram, em, pelo menos, uma morte (o indígena terena Oziel Gabriel), 7 vítimas não fatais de arma de fogo (4 policiais, 2 indígenas e um cão militar), 9 policiais feridos por pedras e 19 indígenas feridos por munição de elastômero, totalizando 36 vítimas. E todo esse prejuízo com eficácia zero, já que duas horas após finalizada a operação (17 h), a fazenda foi reocupada.
Mesmo assim, sindicância interna da PF chegou à conclusão de que não houve irregularidade na operação. O Parecer nº 108/2013, da delegada Juliana Resende Silva de Lima, é explícito neste sentido: “Em que pese as consequências indesejáveis da ação - ferimentos e morte de uma pessoa - a operação obedeceu integralmente o detalhado planejamento elaborado”. O parecer pelo arquivamento da investigação foi acatado pela Superintendência da PF.
Para o MPF, a delegada Juliana Resende Silva de Lima, esposa de um dos comandantes da operação, delegado Eduardo Jaworski de Lima, cometeu ato de improbidade, previsto no artigo 11 da Lei nº 8.429/92, ao não se declarar impedida de elaborar o parecer, mesmo sendo esposa de um dos principais interessados no arquivamento.
O MPF ajuizou ação de improbidade administrativa contra a delegada, que tramita na Justiça Federal de Campo Grande. A pena prevista inclui ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
Erros de Planejamento
O planejamento foi realizado exclusivamente com informações obtidas pela PF e fotos de satélite adquiridas na internet. Não houve nenhum levantamento de campo. Informações foram repassadas à tropa da PM e PF em momentos e locais diferentes. Não havia comando único nem comunicação via rádio entre as corporações. Assim, os policiais agiram isoladamente.
Foi descoberto que o planejamento da Polícia Federal excluiu deliberadamente a participação da Funai e do Ministério Público Federal da operação (as normas vigentes determinam que devem ser avisados com 48 h de antecedência), suprimindo a fase de negociação e resultando no emprego de força policial desproporcional à conduta dos indígenas.
Os registros em vídeo comprovam que a negociação foi limitada à frase dirigida aos indígenas: “Pessoal. Nós viemos cumprir a ordem...e aí?”, sendo encerrada pela polícia menos de 2 minutos após iniciada.
Para o MPF, “qualquer análise superficial das atuais doutrinas policiais, da legislação e orientações nacionais ou dos instrumentos internacionais sobre o uso de força denuncia a vital importância da fase de negociação e seu exaurimento na atuação policial, usando de todos os meios disponíveis para tanto, visando sempre a solução pacífica dos conflitos e fazendo uso da força somente em situações absolutamente excepcionais”.
O efetivo era de 70 policiais federais, mas apenas 15 haviam participado de treinamentos de armamento e tiro em época recente. 82 policiais militares do Batalhão de Choque completavam o efetivo. No ápice da ação, o número de indígenas foi estimado entre 1500 e 2000 pessoas. Durante o conflito, houve o acionamento emergencial de uma aeronave e mais 22 policiais militares. Dois policiais federais foram enviados às pressas até a sede da PF, a 80 quilômetros de distância, para buscar mais armamento e munições não letais, que haviam acabado.
A espera por reforço foi de cerca de duas horas. Enquanto isso, as forças policiais ficaram estacionadas, sendo agredidas pelos indígenas, cada vez mais numerosos, e, por vezes, diante da inexistência de instrumentos menos letais disponíveis, disparando com armas de fogo, ainda que inobservando as regras técnicas. A morte de Oziel Gabriel e os ferimentos mais graves aconteceram neste intervalo.
Após a chegada do reforço, os policiais recuaram os indígenas até a Aldeia Buriti, indo bastante além da porteira da Fazenda Buriti, excedendo ilegalmente os limites do mandado judicial, chegando a manter guarda na frente do acampamento indígena e expulsar indígenas de aldeias vizinhas, em claro confronto ao que determina a lei.
Não foram enviados relatórios da operação ao Ministério Público, Judiciário ou Funai, como determinam as normas. O relatório da Polícia Federal foi elaborado somente em 17/07/2013, quase dois meses após os fatos. O atraso prejudica a fidelidade dos relatos e eventuais responsabilizações.
Neste sentido, é importante registrar que o comandante da operação, delegado Marcelo Alexandrino, mesmo passados dois anos da ação policial, demonstrou desconhecimento e falta de interesse em conhecer as orientações nacionais e internacionais sobre execução de mandados judiciais de reintegração de posse coletiva, a legislação nacional sobre o uso da força pelos agentes de segurança pública, bem como os instrumentos internacionais mais importantes sobre o uso da força e de armas de fogo.
Por consequência, o MPF expediu Recomendação à Superintendência Regional da Polícia Federal em Mato Grosso do Sul, especificando detalhadamente toda a legislação nacional e internacional que rege os procedimentos que devem ser seguidos em casos de reintegração de posse de áreas coletivas e controle de distúrbios civis, além do uso de armamento naquelas situações. Como de praxe, caso a Recomendação não seja atendida, o MPF poderá adotar a via judicial.